quinta-feira

A língua cabo-verdiana, conceito e preconceitos

Acabar com os preconceitos e relembrar o conceito da nossa língua materna é ainda necessário.

Separar as águas linguísticas em relação ao português também o é.
Penso que todos nós como cabo-verdianos reconhecemos o papel da língua portuguesa na nossa educação, no nosso desenvolvimento académico e humano, na nossa constante actualização, etc.
Por alguma razão, já com a independência, foi confirmada como a primeira língua oficial do nosso país.
Ainda sobre a língua portuguesa e a propósito do que tenho lido nalguns órgãos de comunicação do arquipélago, relembraria que o português é uma língua com variedades regionais, ou seja, apresenta especificidades situacionais com pequenas divergências gramaticais. Daí termos o português europeu (Portugal), português do Brasil, português de Moçambique, etc.
As pequenas divergências não são suficientes, por exemplo, para se dizer que existe "a língua brasileira". Existe, sim, a língua portuguesa com as suas variantes e com os seus dialectos.
No que toca ao português europeu há dois grupos dialectais: o setentrional (falado no norte) e o meridional (falado no sul e ilhas).
Virando a agulha para as ilhas e para quem tem o cabo-verdiano como língua materna, ler ou ouvir dizer que ela é português (como ainda acontece com alguns dos nossos irmãos nos USA), dialecto do português ou outra coisa que não seja LÍNGUA CABO-VERDIANA, é tão preconceituoso como chamar-lhe "língua de preto" (expressão usada por Gil Vicente e outros autores da época como Anrique da Mota e Fernão da Silveira).
O cabo-verdiano é uma língua! Este é o conceito.
Não é um dialecto nem outro tipo de preconceito.
É uma língua porque tem uma gramática própria, independente, coisa esta que lhe dá esse estatuto de língua e não propriamente a independência política. A sua gramática não pode ser comparada com a portuguesa e isso é tão perceptível como demonstrável a um menino ou a um adulto.
Curiosamente, de uma forma grosseira, diria que a nossa gramática (sobretudo a morfossintaxe) está tão próxima das línguas da África ocidental, como a maioria do nosso léxico está em relação ao português. No entanto, a nossa língua materna cabo-verdiana não é europeia nem africana. O nosso bioprograma não é português nem africano. É cabo-verdiano.
O cabo-verdiano tem o valor de uma língua, tal como o português, búlgaro, tagalo ou mandarim. É uma língua que tem as suas especificidades reflectidas no seu léxico, na sua sintaxe, na sua fonologia e semântica, ou seja, na sua gramática. Desta forma ela tem que ser tomada como um todo e não pode ser uma língua baseada apenas na parte lexical (onde encontramos os traços mais europeus). Ela é a nossa maior bandeira cultural, representante de um povo único com um bioprograma próprio, independente.
É sob esta perspectiva "do todo" que deve e merece ser estudada nas nossas escolas. É também sob esta perspectiva global que ela devia ser a base para a elaboração de um código escrito, que a contemple como língua de raiz luso-africana (ou se quiserem afro-portuguesa, euro-africana), um código de escrita consensual, o que implicaria cedências.

Publicada em:
http://www.bravanews.com/?c=123&a=2114

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