quinta-feira

Língua crioula - formação, vida e morte

Li uma recente notícia que dava conta que o nosso escritor Germano de Almeida defende o ensino do português como língua estrangeira em Cabo Verde.
Já muitas vozes se insurgiram contra, apontando diversas razões. Com todo o respeito que nutro pelo Germano de Almeida, pessoalmente, creio que seria um erro crasso enveredar por esse caminho. Traria consequências a todos os títulos imprevisíveis no relacionamento com os outros membros da CPLP, bem como forte resistência por parte da maioria dos cabo-verdianos, ainda que a sua intenção seja a melhor. 
A língua portuguesa também é nossa língua, não só porque é língua-mãe do cabo-verdiano (sobretudo na parte lexical), mas porque é uma língua de contacto e língua oficial, para não citar outras razões.
Tenho lido também algumas notícias que dão conta da aposta que se quer fazer na língua portuguesa, reforçando o seu papel no mundo. Prova disso é a “Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial”, acolhida em Brasília nestes dias. Creio que a caravela da língua portuguesa tem futuro e vai continuar a sulcar os sete mares, não apenas como resultado do esforço dos estados-membros da CPLP - como bloco político e linguístico - mas porque também existe e vai continuar a existir o lado dos que procuram a língua portuguesa.
Se for este o caminho da nossa língua portuguesa, beneficiaremos todos.
A partir destes dois cenários, gostaria de me deter um pouco sobre o papel na nossa língua materna – o cabo-verdiano.
Toda a língua é dinâmica - reinventa-se – e, por conseguinte, dá sinais de vida, respirando (coisa que nem sempre a gramática faz). Constantemente inspira neologismos, empréstimos e até mesmo algumas texturas sintácticas. Constantemente expira outras palavras, cria arcaísmos e sepulta também expressões idiomáticas. Quando deixa de ser funcional, a língua prepara-se também para a sepultura.
No caso concreto das chamadas “línguas crioulas”, também há um ciclo de vida e no que toca à sua formação, antes de se tornar numa língua, parte-se do princípio que tenha passado pela fase do jargão e do pidgin.
Simplificando, o jargão dar-se-á quando existe uma situação de crise comunicativa entre pessoas que não falam a mesma língua e que precisam de comunicar numa língua que não dominam.
Dou o exemplo imaginário, algures no Luxemburgo – país que recebe muitas comunidades estrangeiras – onde um italiano, um montenegrino e um português convivem regularmente por motivos laborais. Todos eles são recém-chegados e todos eles vão usar o francês como língua de integração, de recurso comunicativo, pois é a língua que melhor serve aos três.
Se tiverem um colega de trabalho francês, este vai simplificar a língua francesa quando fala com eles.
As características dos três seriam o uso de gestos, elevação do tom de voz, uso limitado de palavras, mas de maneira funcional, gramática simplificada ao máximo (“Eu ir casa”).
Como mínimo, tem de haver duas línguas, de onde se escolhe uma como doadora de léxico, no caso deles, a língua francesa.
Para quem domina uma língua e para quem não a domina, os processos são diferentes. Um simplifica para que o outro entenda e o outro faz por compreender e assimilar a forma simplificada.
A fase posterior a este processo seria o pidgin, em que o jargão se tornaria estável e é partilhado por uma comunidade multilingue e não a nível individual. Distinguindo os campos, o pidgin não se apresenta tão variável como o jargão e já obedece a regras gramaticais, por ser colectivo.
O pidgin poderia levar os falantes a dar o salto para a aprendizagem da língua dominante (no caso dos três, o francês) e desaparecer pela sua falta de funcionalidade, poderia também se tornar mais complexo a nível da sua estrutura, ganhando mais léxico, e gerar um crioulo (a fase posterior) ou ainda não evoluir e se estabilizar.
Seguindo a distinção das diferentes fases, o pidgin revela menos léxico e menos gramática que o “crioulo”.
Outra diferença é que o pigdin é falado por pessoas que têm a sua própria língua materna enquanto o “crioulo” é já a fase da primeira geração que nasceu e que encontra nesse pidgin dos pais (agora crioulo) a sua língua materna.
Chegado a este ponto, centrar-me-ia mais no cabo-verdiano, vulgo “crioulo”.
Concretamente sobre a sua origem, há muita literatura conhecida e muitas teorias.
Uma dessas teorias é a da escola de línguas do tempo do Infante D. Henrique, onde supostamente se criou esse “crioulo” como forma de comunicação com os africanos.
Com a recente descoberta feita no Algarve, de um cemitério de escravos africanos, esta teoria não seria de toda descabida.
Outra teoria, fortemente sustentada, aponta que a formação do nosso “crioulo” teve lugar na costa da Guiné, através da presença de lançados portugueses entre os africanos.
Uma terceira tese refere que terá nascido em Cabo Verde, tendo também sido levado depois para outras paragens.
Existem também outras teorias sobre a formação de uma “língua crioula”, como a dos princípios universais, defendida por diversos académicos.
Teorias para todos os gostos.
Depois da sua formação, o “crioulo” tenderia a estabilizar-se e terá sido este o processo do cabo-verdiano, que mesmo após tempos de ferozes perseguições e “clandestinidade” conseguiu sobreviver até hoje. Arriscaria em dizer que, possivelmente, era mais forte nesses momentos de aperto que hoje em dia.
E é esta a minha preocupação – a força da nossa língua materna. Já hoje se lê por aqui e por ali que “estão a matar o nosso crioulo”, a “dar cabo da nossa língua”, mas julgo que por motivações outras que não as que enumero.
Existe um processo degenerativo do “crioulo” e que se chama descrioulização, esse sim verdadeiro perigo de morte para a nossa língua, apesar das gramáticas e outros instrumentos normativos que já temos.
Esse processo resumir-se-ia à perda de traços, estrutura e regras dessa “língua crioula”, isto pelo contacto com uma outra língua (normalmente a língua dominante dos velhos tempos ou ainda outra língua).
Constato que, progressivamente, vamos perdendo as nossas regras e as vamos substituindo, ainda que de forma inconsciente, pela língua de maior contacto – o português. É como se não soubéssemos distinguir o espaço e papel das duas línguas.
Facilmente podemos encontrar escrito exemplos como “...nos ilhas sta na rota de trafico”, “...nu sa ta discubri ruas e ruinas di edificius...” ou “...culpa é di pais, não di fidjus”, “ses afronta são pa tudo povo cauverdiano”, etc.
Preocupo-me com o que leio e escuto e tenho a impressão que há cada vez mais cabo-verdianos a "misturar” as duas línguas.
Preocupo-me porque há exemplos de “crioulos” que estão a morrer ou a perder terreno. É o que acontece, por exemplo, com o Patuá (“crioulo de Macau”) que tem sido esmagado cada vez mais pelo cantonês, como o asturo-leonês em Espanha, que é prensado pelo galego e pelo castelhano. 
Morreu o latim, morreu o dálmata e morreram muitas outras línguas mais, entre as quais as “línguas crioulas”.
Pouco a pouco se deixam assimilar pela língua de contacto e vão perdendo a sua funcionalidade, acabando por morrer, como aconteceu com tantos crioulos exógenos de base lexical portuguesa. Veja-se o exemplo dos crioulos (de base portuguesa) usados pelos cafres na Índia e que deixaram de existir, engolidos pelas línguas locais, de contacto e dominantes (e que não eram lexificadoras desses “crioulos”).
Mas não pensemos que por termos um crioulo endógeno que estaremos imunes ao contacto com outras línguas. A comunicação social já quebrou essa fronteira de há uns anos para cá.
Sobre esse contacto, as ilhas Seychelles são um exemplo claro do que pode acontecer quando um língua dominante tem caminho livre para ocupar o espaço de uma outra língua minoritária – o inglês em relação ao “crioulo” local de base francesa. Nesse aspecto, com a sua força, o inglês assombra as línguas minoritárias.
Nas Antilhas já morreu o “kreole berbice”, da Guyana e também o crioulo das “Ilhas Virgens Americanas” e outros tantos para lá caminham, porque perderam os seus traços e a sua funcionalidade. As pessoas, aos poucos e sem se darem conta, passaram a falar outras línguas e ao longo do tempo deixaram os seus traços.
Não pretendo fazer nenhuma “crónica de uma morte anunciada”, até porque não desejo e não acredito que a nossa língua materna morra. Recalcaria apenas que desde que a comunicação social passou a entrar nas nossas casas, com novelas e outros programas, os cabo-verdianos ficaram mais expostos à língua de contacto – português.
É uma saudável exposição, uma ferramenta para a aprendizagem e o aperfeiçoamento do português, mas que, por falta de uma política linguística consensual sobre o cabo-verdiano, tem criado um desequilíbrio gritante na comunicação social entre as duas línguas, trazendo efeitos não esperados
Como exemplo disso, mais uma vez, uma certa escrita em cabo-verdiano vem revelando já assimilações das regras do português. Algo progressivo.
Refiro-me à concordância de género e número, o uso de formas verbais como “são”, a introdução de artigos definidos, etc. Também novas palavras têm entrado no cabo-verdiano para ocupar o lugar outras que já temos e com o mesmo valor. Veja-se o exemplo de “suicídio” para o lugar de “mata cabeça”, etc.
Há que voltar ao “crioulo”, “recreoulizar”. Melhor dito, há que voltar ao cabo-verdiano.
Reconstruir e reactivar o nosso cabo-verdiano para não passarmos à fase descendente de “semi-crioulo”.
O cabo-verdiano tem-se tornado cada vez mais leve e sobretudo nas camadas jovens.
Existe espaço de convívio entre as nossas duas línguas. Podem e devem coexistir, mas parece-me que se pode fazer algo mais pelo cabo-verdiano. É o cabo-verdiano que te de se mexer e não o português que tem de recuar.
Defendo a língua portuguesa como língua oficial, na qual escrevo por ser nesta fase a minha língua primeira. Defendo-a pelas portas que nos abre lá fora, pelo seu “papel internacional”, mas também defendo a sobrevivência do cabo-verdiano como língua nacional, materna e oficial e pelo seu papel identitário.
Uma questão de reequilíbrio que implicaria entendimentos entre a comunicação social, decisores políticos, sociedade civil, enfim, todos.
Tal como acontece com a língua portuguesa, e bem, seria bom sinal ler algumas notícias que dessem conta da aposta que se quer fazer na língua cabo-verdiana, reforçando o seu papel sobretudo a nível interno.

Publicado em:

http://www.forcv.com/articles/post/2010/03/29/e2809cLingua-Crioulae2809d-Formacao-Vida-e-Morte.aspx

http://liberal.sapo.cv/noticia.asp?idEdicao=64&id=27919&idSeccao=527&Action=noticia

www.bravanews.com/?c=140&a=2535

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